sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Dia Santo (Um conto sobre a religiosidade da juventude brasileira)


Acordou com a cabeça confusa por causa das palavras do último encontro. Depois de toda aquela explicação da semana passada, as coisas começaram a tomar um sentido cabal. Ele sabia que dessa vez não seria muito diferente. Os temas e abordagens até sofrem alguma variação, mas o pano de fundo da pregação permanece o mesmo.  Vestiu sua roupa e tomou café ao som da TV que, da sala, propagava as ilusões desse mundo. Mais do que nunca ele estava certo de que caminhava para o céu e que nem mesmo as perversões do noticiário ou o fetiche do intervalo comercial seriam capazes de lhe privar de seu destino final. Pegou o livro e saiu de casa. 
Uma vida inteira! Foi o que ele experimentou em flashes desordenados que insistiam em povoar sua mente durante o trajeto entre seu apartamento até a congregação. As pessoas em sua idade têm a capacidade de visitar todas as esquinas de sua autobiografia em um intervalo de poucos minutos. Pode se dizer, então, que ele teria quase uma eternidade naquela baldeação de aproximadamente uma hora. A autobiografia é, de fato, a maior possessão do jovem brasileiro médio no vigor de seus vinte poucos anos. Que não me permita mentir o advento das redes sociais. 

Além de exibir todos os magníficos feitos da juventude, fazendo com que uma ida à padaria ganhe o glamour de um passeio nos bulevares parisienses, as redes sociais ainda apresentam a insuperável tecnologia de reedição.  Como se sabe, entre as eras que separam as semanas, cabem as transformações epopeicas do perfil e do status e, é claro, a fotografia documental das novas conquistas. Isso se soma aos blogs, flogs, vlogs, e não sei o que logs, que fazem ecoar toda a criatividade e originalidade dos prodigiosos filhos da era virtual.

Ele, porém, era diferente, não utilizava desses meios por vaidade. Eram apenas ferramentas para demonstrar com uma certa moderação o que de melhor havia em si. Sabia que entre o inferno e o paraíso havia um abismo que só seria superado com muito esforço e fé.

Há dois anos atrás, os trinta e cinco minutos do itinerário lhe permitiam alguns minutos a mais de sono.   
Com a decisão dos grandes centros de fazer do Brasil mais uma vez o país do futuro, as coisas mudaram. Agora a cidade era canteiro de obras.  Quer dizer, as vias que ligavam o aeroporto ao centro e o centro ao o novo estádio. Para completar o cenário, veio a estratégia governamental de fazer a nação se desenvolver sobre rodas. Apesar de todos os protestos e de sua particular insatisfação com a classe política, naquela hora do dia ele pensava em termo mais simples. Não é tarefa difícil calcular a equação! Pouco asfalto somado a muitos carros é igual a vinte e cinco minutos a menos de sono, que também se equivalem a mais devaneios mentais trajeto afora.

Olhou para o cobrador, que dividia a atenção entre o celular, que acabara de tirar do bolso, e uma senhora que aguardava pelo troco. Alguns cobradores simplesmente não resistem à tecnologia que lhes confere o direito inalienável de impor seu gosto musical sobre toda a condução. Tocava uma música do repertório popular que não lhe agradava muito. Estava seguro de que esse tipo de arte não chegaria ao céu. Foi o um lapso que interrompeu o turbilhão de memórias. Mas logo se voltou a elas. Todas aquelas lembranças lhe convenciam de uma coisa: o pecado original começou em casa.
Ele não conseguia apontar exatamente de quem era a culpa, mas sabia que ele havia sido uma presa fácil de uma estrutura que o abrangia. Ainda cedo, se entregou às fantasias da retórica e da lógica, presentes na família. Hoje, mais lúcido, ele percebia que isso lhe custara muito caro. Reconheceu que apesar de sua última infância ter sido guiada por valores que agora lhe pareciam tão distantes, sempre lhe rondava a possibilidade de ver as coisas por esse novo paradigma.

Constatou que a cada fase da vida poderia apontar para janelas, que lhe convidavam a enxergar a existência de forma tão clara como agora. Veio-lhe a mente, por exemplo, as palavras que havia escutado da boca de um profeta quando ainda era um pré-adolescente. Naquela época ele não conseguia compreender a dimensão da revelação.  À luz do encontro da ultima semana, aquele episódio se esclarecia. O mundo verdadeiramente não era capaz de entendê-lo. E como poderia? As multidões não são dotadas do conhecimento necessário para apreciar a verdade. A revelação da qual agora ele era um arauto se restringia a poucos, embora ela impactasse a todos.

A freada brusca interrompeu sua última reminiscência. Pensava sobre uma crise existencial da velha adolescência e de sua obtusa insistência em seguir pelo caminho mais alargado. Deixou a reflexão incompleta, era o ponto final! Pegou o livro com a mão direita e ajeitou um caderno de notas. Ali escrevia os pontos para futura devoção. Dali do ponto até o templo eram apenas cinco minutos de caminhada. À medida que se aproximava ia vendo outros que, mesmo vindo das mais variadas destinações, guardavam com ele coisas em comum. 

O modo de se vestir e a maneira de falar eram talvez as mais evidentes entre elas exceto, é claro, no caso de alguns fracos na fé. Convicto de que a escolha do traje era capaz de revelar as mais profundas convicções pessoais, não vacilava nessa disciplina. Era preciso selecionar os panos, os cortes e as cores que refletissem a decência de fazer parte daquela distinta casta. Os mais radicais não se descuidavam inclusive das questões referentes a cabelo e barba.  No fundo ele desaprovava a escolha estética dos neófitos que se juntavam ao grupo. Achava que suas vestimentas eram prova de que ainda não haviam experimentado uma conversão tão sincera quanto a sua. Reconheceu por um momento que o âmbito mais profundo de sua transformação era muito recente e, ao perceber que estava quase a porta, concluía que o pensamento anterior havia sido um lampejo farisaico. Sua desaprovação aos menos fervorosos logo se transformou em um entusiasmo pela catequização. Todos ali eram alvos diretos da mensagem, mesmo que ainda não soubessem disso.

A linguagem também era algo que distinguia aquele grupo do resto do mundo.  Tinham um vocabulário próprio, com palavras que se distanciavam da vida comum. Um emaranhado terminológico que de uma forma ou de outra apontavam para o a escatologia daquela fé. Era uma crença internacional, mas que se materializava periodicamente no encontro daquela congregação local - um microcosmo de um universo bem mais abrangente. Se gabavam em acolher todos os grupos de todos os povos e raça, mas aquela pequena congregação acolhia indivíduos de grupo bem mais restrito.

 A afirmação de que a mensagem devia alcançar a todos era contrariada pela predominância caucasiana e o reduzido número de pessoas vindas das áreas mais pobres. De qualquer forma, arredor do globo o todo era, de fato plural, inclusive com significativo número de discordância entre si. Havia diferentes seitas com diferentes perspectivas e abordagens, mas todas elas orbitavam em torno da crença em um mundo vindouro, onde a paz e a justiça haveriam de reinar. Os mais convictos tinham certeza de que muitas lágrimas precisariam rolar. Afinal de contas, se sacrificar pela causa era parte da própria profissão de fé, ainda que o sacrifício fosse o de sacrificar!

Entrou pela porta e escolheu o assento mais aproximado do púlpito. Abriu o caderno de notas relembrando as inspiradoras palavras do último encontro. O estudo daquele livro chegara a um ponto crucial, o ápice da meta-narrativa que movia e sustentava a ação de todos naquele prédio, que haviam encontrado o caminho. Mal podia esperar pela palavra profética de hoje.
Mais alguns minutos, um homem cujos cabelos brancos testemunhavam a caminhada de fé começou a falar. O pregador lia do mesmo livro que o jovem havia trazido de casa.  Assim que terminou a leitura, aquele homem começou a interpretá-la comentando as passagens minuciosamente. Uma mensagem radical contra o que há de errado nesse mundo. 

Depois das contestações, observava que aquele era, sobretudo, um discurso de esperança. O pastor anunciava um reino vindouro que, independente da vontade dos homens, se realizaria aqui mesmo. Uma nova terra! Advogava que seria mais prudente ficar do lado da História. O jovem passou a fitar com maior intensidade o pregador, que refletia sobre os fundamentos  que haviam de nortear a vida daquelas crianças. Enquanto ouviam o sermão,  sua fé inabalável o conectava aos outros devotos.Algumas raras vezes, quando era apropriado, compartilhavam experiências citando os grandes heróis que corajosamente se encarregaram de propagar aquela tradição ao longo dos séculos. Ele mesmo tinha os seus profetas preferidos e se sentia muito encorajado quando citavam o homem barbudo que postulou a crença e todas as bases para a possibilidade do paraíso. 


Sua vida se enchia de significado ao som daquela homilia. Tinha orgulho de ser um missionário e a essa altura estava ciente de que não deveria poupar esforços para convencer mais e mais pessoas acerca da verdade. Pregar por palavras e atitudes! Sabia que seguir o mover soberano da História significaria ser um agente de transformação. Uma missão pra vida toda, custe o que custar!
Era dia de comunhão, logo depois da reunião poderia mais uma vez compartilhar com seus irmãos a alegria de ser um corpo e o privilégio de beber do mesmo copo. A comunhão  lhe permitia reverberar a mensagem com seus iguais. Conversariam sobre o prazer de ser chamado para impactar o mundo e refletiriam sobre os desafios e possíveis  estratégias de evangelização.

Depois da contemplação de tudo o que era mais sagrado e do compartilhamento da sabedoria vinda dos oráculos - que acima de tudo querem o bem a qualquer preço -, o professor encerrou a aula. No quadro negro, a citação em letras garrafais era o único vestígio de que os fieis estiveram ali.
Lia-se: “os filósofos têm apenas interpretado diversamente o mundo; trata-se de modificá-lo”.[1] Ele saiu depressa para o bar mais próximo do templo, caminhando com seus companheiros. Bocas sedentas por cuba libre e corações ávidos por uma profunda transformação. Caminhava e pensava que aquela dose de materialismo - intrínseco a qualquer análise séria da realidade - o levava a concluir que era preciso ser estupidamente irracional para acreditar em Deus.  Insistia na ingênua afirmação de que a igreja é programa restrito aos domingos e dizia preferir morrer a colocar seus pés em uma catedral.




[1]   Marx, K. – Teses sobre Feuerbach, 1845. Transcrito por Fred Leite Siqueira Campos para The Marxists Internet Archive, disponível em: www.vermelho.org.br/img/obras/feuerbach.rtf .

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