Acordou com a cabeça confusa por causa das palavras do último
encontro. Depois de toda aquela explicação da semana passada, as coisas
começaram a tomar um sentido cabal. Ele sabia que dessa vez não seria muito
diferente. Os temas e abordagens até sofrem alguma variação, mas o pano de
fundo da pregação permanece o mesmo.
Vestiu sua roupa e tomou café ao som da TV que, da sala, propagava as
ilusões desse mundo. Mais do que nunca ele estava certo de que caminhava para o
céu e que nem mesmo as perversões do noticiário ou o fetiche do intervalo
comercial seriam capazes de lhe privar de seu destino final. Pegou o livro e
saiu de casa.
Uma vida inteira! Foi o que ele experimentou em flashes
desordenados que insistiam em povoar sua mente durante o trajeto entre seu
apartamento até a congregação. As pessoas em sua idade têm a capacidade de
visitar todas as esquinas de sua autobiografia em um intervalo de poucos
minutos. Pode se dizer, então, que ele teria quase uma eternidade naquela
baldeação de aproximadamente uma hora. A autobiografia é, de fato, a maior
possessão do jovem brasileiro médio no vigor de seus vinte poucos anos. Que não
me permita mentir o advento das redes sociais.
Além de exibir todos os magníficos feitos da juventude, fazendo com
que uma ida à padaria ganhe o glamour de um passeio nos bulevares parisienses, as
redes sociais ainda apresentam a insuperável tecnologia de reedição. Como se sabe, entre as eras que separam as
semanas, cabem as transformações epopeicas do perfil e do status e, é claro, a
fotografia documental das novas conquistas. Isso se soma aos blogs, flogs,
vlogs, e não sei o que logs, que fazem ecoar toda a criatividade e
originalidade dos prodigiosos filhos da era virtual.
Ele, porém, era diferente, não utilizava desses meios por vaidade.
Eram apenas ferramentas para demonstrar com uma certa moderação o que de melhor
havia em si. Sabia que entre o inferno e o paraíso havia um abismo que só seria
superado com muito esforço e fé.
Há dois anos atrás, os trinta e cinco minutos do itinerário lhe permitiam
alguns minutos a mais de sono.
Com a
decisão dos grandes centros de fazer do Brasil mais uma vez o país do futuro,
as coisas mudaram. Agora a cidade era canteiro de obras. Quer dizer, as vias que ligavam o aeroporto
ao centro e o centro ao o novo estádio. Para completar o cenário, veio a
estratégia governamental de fazer a nação se desenvolver sobre rodas. Apesar de todos os protestos e de sua particular insatisfação com a
classe política, naquela hora do dia ele pensava em termo mais simples. Não é
tarefa difícil calcular a equação! Pouco asfalto somado a muitos carros é igual
a vinte e cinco minutos a menos de sono, que também se equivalem a mais devaneios
mentais trajeto afora.
Olhou para o cobrador, que dividia a atenção entre o celular, que
acabara de tirar do bolso, e uma senhora que aguardava pelo troco. Alguns
cobradores simplesmente não resistem à tecnologia que lhes confere o direito
inalienável de impor seu gosto musical sobre toda a condução. Tocava uma música
do repertório popular que não lhe agradava muito. Estava seguro de que esse
tipo de arte não chegaria ao céu. Foi o um lapso que interrompeu o turbilhão de
memórias. Mas logo se voltou a elas. Todas aquelas lembranças lhe convenciam de
uma coisa: o pecado original começou em casa.
Ele não conseguia apontar exatamente de quem era a culpa, mas sabia
que ele havia sido uma presa fácil de uma estrutura que o abrangia. Ainda cedo,
se entregou às fantasias da retórica e da lógica, presentes na família. Hoje,
mais lúcido, ele percebia que isso lhe custara muito caro. Reconheceu que
apesar de sua última infância ter sido guiada por valores que agora lhe pareciam
tão distantes, sempre lhe rondava a possibilidade de ver as coisas por esse
novo paradigma.
Constatou que a cada fase da vida poderia apontar para janelas, que
lhe convidavam a enxergar a existência de forma tão clara como agora. Veio-lhe
a mente, por exemplo, as palavras que havia escutado da boca de um profeta
quando ainda era um pré-adolescente. Naquela época ele não conseguia compreender
a dimensão da revelação. À luz do
encontro da ultima semana, aquele episódio se esclarecia. O mundo
verdadeiramente não era capaz de entendê-lo. E como poderia? As multidões não
são dotadas do conhecimento necessário para apreciar a verdade. A revelação da
qual agora ele era um arauto se restringia a poucos, embora ela impactasse a
todos.
A freada brusca interrompeu sua última reminiscência. Pensava sobre
uma crise existencial da velha adolescência e de sua obtusa insistência em
seguir pelo caminho mais alargado. Deixou a reflexão incompleta, era o ponto
final! Pegou o livro com a mão direita e ajeitou um caderno de notas. Ali escrevia
os pontos para futura devoção. Dali do ponto até o templo eram apenas cinco
minutos de caminhada. À medida que se aproximava ia vendo outros que, mesmo
vindo das mais variadas destinações, guardavam com ele coisas em comum.
O modo de se vestir e a maneira de falar eram talvez as mais
evidentes entre elas exceto, é claro, no caso de alguns fracos na fé. Convicto
de que a escolha do traje era capaz de revelar as mais profundas convicções
pessoais, não vacilava nessa disciplina. Era preciso selecionar os panos, os
cortes e as cores que refletissem a decência de fazer parte daquela distinta
casta. Os mais radicais não se descuidavam inclusive das questões referentes a
cabelo e barba. No fundo ele desaprovava
a escolha estética dos neófitos que se juntavam ao grupo. Achava que suas
vestimentas eram prova de que ainda não haviam experimentado uma conversão tão
sincera quanto a sua. Reconheceu por um momento que o âmbito mais profundo de sua
transformação era muito recente e, ao perceber que estava quase a porta,
concluía que o pensamento anterior havia sido um lampejo farisaico. Sua
desaprovação aos menos fervorosos logo se transformou em um entusiasmo pela
catequização. Todos ali eram alvos diretos da mensagem, mesmo que ainda não
soubessem disso.
A linguagem também era algo que distinguia aquele grupo do resto do
mundo. Tinham um vocabulário próprio,
com palavras que se distanciavam da vida comum. Um emaranhado terminológico que
de uma forma ou de outra apontavam para o a escatologia daquela fé. Era uma
crença internacional, mas que se materializava periodicamente no encontro
daquela congregação local - um microcosmo de um universo bem mais abrangente.
Se gabavam em acolher todos os grupos de todos os povos e raça, mas aquela
pequena congregação acolhia indivíduos de grupo bem mais restrito.
A afirmação de que a mensagem
devia alcançar a todos era contrariada pela predominância caucasiana e o
reduzido número de pessoas vindas das áreas mais pobres. De qualquer forma,
arredor do globo o todo era, de fato plural, inclusive com significativo número
de discordância entre si. Havia diferentes seitas com diferentes perspectivas e
abordagens, mas todas elas orbitavam em torno da crença em um mundo vindouro,
onde a paz e a justiça haveriam de reinar. Os mais convictos tinham certeza de
que muitas lágrimas precisariam rolar. Afinal de contas, se sacrificar pela
causa era parte da própria profissão de fé, ainda que o sacrifício fosse o de
sacrificar!
Entrou pela porta e escolheu o assento mais aproximado do púlpito.
Abriu o caderno de notas relembrando as inspiradoras palavras do último
encontro. O estudo daquele livro chegara a um ponto crucial, o ápice da
meta-narrativa que movia e sustentava a ação de todos naquele prédio, que
haviam encontrado o caminho. Mal podia esperar pela palavra profética de hoje.
Mais alguns minutos, um homem cujos cabelos brancos testemunhavam a
caminhada de fé começou a falar. O pregador lia do mesmo livro que o jovem
havia trazido de casa. Assim que
terminou a leitura, aquele homem começou a interpretá-la comentando as
passagens minuciosamente. Uma mensagem radical contra o que há de errado nesse
mundo.
Depois das contestações, observava que aquele era, sobretudo, um
discurso de esperança. O pastor anunciava um reino vindouro que, independente
da vontade dos homens, se realizaria aqui mesmo. Uma nova terra! Advogava que seria
mais prudente ficar do lado da História. O jovem passou a fitar com maior
intensidade o pregador, que refletia sobre os fundamentos que haviam de nortear a vida daquelas
crianças. Enquanto ouviam o sermão, sua
fé inabalável o conectava aos outros devotos.Algumas raras vezes, quando era apropriado, compartilhavam
experiências citando os grandes heróis que corajosamente se encarregaram de
propagar aquela tradição ao longo dos séculos. Ele mesmo tinha os seus profetas
preferidos e se sentia muito encorajado quando citavam o homem barbudo que
postulou a crença e todas as bases para a possibilidade do paraíso.
Sua vida se enchia de significado ao som daquela homilia. Tinha
orgulho de ser um missionário e a essa altura estava ciente de que não deveria
poupar esforços para convencer mais e mais pessoas acerca da verdade. Pregar
por palavras e atitudes! Sabia que seguir o mover soberano da História
significaria ser um agente de transformação. Uma missão pra vida toda, custe o
que custar!
Era dia de comunhão, logo depois da reunião poderia mais uma vez
compartilhar com seus irmãos a alegria de ser um corpo e o privilégio de beber
do mesmo copo. A comunhão lhe permitia
reverberar a mensagem com seus iguais. Conversariam sobre o prazer de ser
chamado para impactar o mundo e refletiriam sobre os desafios e possíveis estratégias de evangelização.
Depois da contemplação de tudo o que era mais sagrado e do
compartilhamento da sabedoria vinda dos oráculos - que acima de tudo querem o
bem a qualquer preço -, o professor encerrou a aula. No quadro negro, a citação
em letras garrafais era o único vestígio de que os fieis estiveram ali.
Lia-se: “os filósofos têm apenas interpretado diversamente o mundo;
trata-se de modificá-lo”.
Ele saiu depressa para o bar mais próximo do templo, caminhando com seus
companheiros. Bocas sedentas por cuba libre e corações ávidos por uma profunda
transformação. Caminhava e pensava que aquela dose de materialismo - intrínseco a
qualquer análise séria da realidade - o levava a concluir que era preciso ser
estupidamente irracional para acreditar em Deus. Insistia na ingênua afirmação
de que a igreja é programa restrito aos domingos e dizia preferir morrer a
colocar seus pés em uma catedral.