segunda-feira, 24 de junho de 2013

Ruas que Transbordam a Crise de Identidade da Igreja Brasileira

            Enquanto as ruas das capitais brasileiras se enchem de esperança, um vazio existencial se espalha pela  igreja cristã. A crise de identidade dessa igreja cresce a medida que se multiplica o entusiasmo secular de construir um país melhor por vias sociais democratas.  Nas discussões referentes as manifestações “pacíficas” dos últimos dias, uma pergunta tem rondado a cabeça confusa da igreja brasileira :Jesus iria ou  não as ruas para se manifestar contra o sistema? Variadas são as abordagens. Alguns defendem que certamente Jesus sairia para manifestar, que sempre lutou pelas causas dos oprimidos e que não seria agora que se omitiria. Outros dizem que Jesus jamais se misturaria com causas políticas. Há ainda aqueles que entendem que Jesus não iria, mas certamente apoiaria os cristãos a fazer sua parte: ir as manifestações sem o uso da violência. Parece me que todas essas alternativas compartilham de um problema hermenêutico fundamental referente ao papel da Igreja no mundo.
            Stanley Hauerwas é um teólogo americano que apresenta uma voz singular no presente debate sobre a missão da igreja de Cristo. Ele critica a fragmentação do evangelho que pode ser observada através de duas formulações distintas no seio da igreja contemporânea. De um lado, o evangelho espiritual diz respeito ao enfoque de uma mensagem de salvação que opera apenas no âmbito micro-ético. De outro lado o evangelho social diz respeito a uma abordagem sócio-política da vida humana. Hauerwas afirma que ambas as posições se submetem a meta-narrativa da social democracia. A abordagem do evangelho espiritual pressupõe que a igreja deve focar nas mazelas da alma, sendo que os indivíduos devem cuidar da agenda social de forma autônoma ao se engajar democraticamente no estado secular. A abordagem do evangelho social, por sua vez,   foca na transformação dos arranjos sociais e políticos pressupondo que seja possível hastear uma bandeira ecumênica de luta pela paz e justiça.
            Longe de afirmar que o evangelho espiritual não seja um problema, me atrevo a dizer que pelo menos no Brasil essa é uma abordagem fora de moda e já bastante contestada. As grandes editoras cristãs, os seminários teológicos e a eclesiologia brasileira têm flertado de forma consistente com o evangelho social, na figura da teologia da Missão Integral. Não quero pecar por simplismo. Sei que será difícil escutar de um defensor  que a Missão Integral se resume estritamente ao evangelho social. É preciso reconhecer que a Missão Integral se articula de forma consideravelmente mais sofisticada. No entanto,   para evitar entraves terminológicos, sublinho apenas que o pensamento cristão brasileiro tem, de fato, se moldado em torno da noção de que a igreja precisa tornar o evangelho relevante, atendendo  as demandas sociais e políticas contemporâneas.
Hauerwas critica a ingenuidade presente na ideia de que igreja precisa tornar o evangelho relevante. Ele afirma que essa perspectiva parte do pressuposto de que a missão da igreja seria a de simplesmente transformar o mundo. Alertando sobre a incompletude desta abordagem  ele  lembra que a igreja só é capaz de compreender a realidade através de Cristo. Nesse sentido, o próprio conceito de mundo depende do reconhecimento de que Cristo é o Senhor.  Esse é um ponto fundamental que a igreja brasileira tem desconsiderado. Se é somente através da vida, morte e ressurreição de Cristo que é possível compreender a realidade, então a igreja, por definição, não luta pelas mesma coisas que o mundo luta. Para explicar com Hauerwas, “a igreja não sabe o que [paz e justiça] significam fora da vida e morte de Jesus de Nazaré”.[i] Ou seja, a igreja não consegue  se localizar politicamente fora do significado do evangelho e por isso mesmo há uma diferença essencial entre ser Igreja e ser mundo. Daí concluímos que aquilo que Igreja chama de justiça e paz passa a ter um significado diverso daquilo que o mundo chama de justiça e paz.  
 O erro fundamental da Missão Integral é procurar traduzir o evangelho para uma linguagem acessível a qualquer indivíduo,  pressupondo que valores sociais democratas sejam suficientes para construir uma ponte sólida de diálogo. Uma espécie de ecumenismo centrado em palavras chaves como igualdade, justiça e cidadania.  Como Hauerwas observa,  quando um cristão se engaja politicamente acreditando que é possível transformar o mundo através de uma debate que, por natureza, exclui o fato de  que Deus governa o universo, ele já manifesta sua falta de fé. Hauerwas não defende uma teocracia, mas nos alerta que se Jesus não submeteu a agenda de César, temos motivos para suspeitar que, hoje, Ele também  não se submeteria a agenda social democrática defendida pela cidade dos homens. Cristo reconhece que César é sempre uma possibilidade que apenas muda de nome e de endereço.
As palavras de Hauerwas podem soar cruéis e exclusivistas, mas refletem um lado mais radical do evangelho. Um lado que tem sido suprimido pelas correntes ideológicas de nosso tempo. De fato, é o próprio Cristo que declara  que Ele “trouxe a espada”.  Sua palavra e vida criam necessariamente uma divisão entre aqueles que o seguem e aqueles que o rejeitam. A crise de identidade da igreja brasileira acompanha a agenda politicamente correta. Temos nos submetido aos conceitos da moda política como forma de apresentar o evangelho. Construímos um Jesus tolerante e igualitário, pronto a afirmar qualquer comportamento dos chamados oprimidos. Um Jesus que sai as ruas para manifestar, ou um Jesus  que fica em casa   ou , ainda, um Jesus que não vai mas envia manifestantes. Em todos esses casos, um Jesus social democrata, que  se submete a crença de que é possível construir um mundo melhor a partir de um projeto que rejeita Cristo de início.  É um Jesus que admite a lógica contemporânea de que  fé se refere ao âmbito privado e que todos os indivíduos devem se engajar num debate político guiados pela neutralidade secular como único meio de alcaçar o bem comum da humanidade.
Longe de querer apresentar uma resposta definitiva para a questão referente ao que Jesus faria frente as manifestações--isso pode certamente terminar em uma idolatria que resume nosso Salvador a uma ideia—quero apenas reforçar a noção de que Jesus sempre nos surpreende.  Ele surpreende a própria lógica do debate político de opiniões. Jesus não tinha opiniões. Ele é a verdade. Reduzir Jesus a um mero posicionamento opinativo contraria a essência de nosso Salvador. Ele é a verdade que ilumina toda a realidade. É o fundamento ultimo daquilo que existe. Como observa Kierkegaard, simplesmente vivendo Jesus ensina mais que os mais geniais dos mestres.[ii] Ele nos surpreende porque sua vida é a verdade, enquanto nós  carecemos de sua graça para que Ele nos transforme em verdade. Não existe diferença entre o que Cristo pensa e o que ele faz. Ele é. Sem entender essa realidade o mundo perambula em vão, insistindo no projeto de construir Babel. Perplexos diante desse mistério, a humanidade imita Pilatos e escolhe crucificar Deus em nome de um bem maior. Foi Justamente por não entender que Jesus é a verdade que Pilatos preferiu crucifica-lo em nome da pax Romana—a opinião de Roma sobre o que promoveria paz e justiça.  
 Cristo também nos surpreende por sua submissão e serviço. Quando o povo clamava por uma revolta contra Roma  em nome dos oprimidos de Israel, Ele optou por servir, cumprindo a vontade de Deus por uma vida sacrificial. Perceba que a  vida de Cristo contraria a retórica da exigência de direitos. Ele é a prestação necessária para a própria vida.  Cristo surpreende Israel porque Ele leva até as ultimas consequências a realidade de que Deus governa  a história e o universo.  Muitos cristãos que saem as ruas para protestar atendem um clamor geral, demonstrando um certo receio de não se juntar ao coro e ser lembrado como quem ficou do lado errado da história.  Afinal de contas, quem poderia  contrariar a democracia? Cristo nos surpreende porque, contrariando o clamor geral por aquilo que seu tempo entendia como justiça, Ele insiste em se submeter ao Deus pai; O Deus que é soberano para usar inclusive a corrupção dos poderosos para fazer prevalecer Sua vontade. Enquanto o país precisa de educação, saúde e infraestrutura, a igreja sai as ruas para manifestar e exigir,  concordando que, de fato, é o estado social democrático o grande responsável por nos prover os bens necessários para a dignidade humana. Cristo nos surpreende  ao exemplificar que o Reino de Deus não nos impulsiona a exigir, mas nos constrange a ser o que Deus exige de nós.
 Houve um tempo em que o que hoje  chamamos de direitos era visto como a materialização da graça e do amor de Deus por meio da igreja. De fato,  a igreja, apesar de todos os seus defeitos e limitações intrínsecas a própria condição humana, cuidou de agenciar  o amor de Deus ao seguir os passos de Cristo através dos séculos. Quando a igreja passa a acreditar que o estado é que deve prover as prestações essências a vida, ela começa a excluir Aquele que torna a própria vida possível. Ela  transfere para o estado o dever que Deus delegou para si. Vejamos então o contraste entre o que podemos chamar de igreja cliente e a igreja agente. A igreja de hoje exige creches e o fim do aborto, a igreja pré-moderna começou os orfanatos como alternativa para aqueles que queriam abandonar  ou abortar bebês. A igreja de hoje exige educação; a igreja medieval cuidou de guardar os livros e o conhecimento ocidental em meio a uma Europa desestabilizada e desinteressada no saber. A igreja de hoje exige escolas,  a igreja reformada entendeu a importância de ler as leis de Deus e deixou como legado o zelo pela alfabetização. A igreja de hoje exige saúde, a Igreja pré-moderna multiplicou os hospitais assim como os  cristão primitivos cuidavam dos romanos vítimas da peste.[iii]
A crise de identidade da igreja brasileira é resultado da falta de fé na transformação que vem de Cristo.  Transformação essa que  acontece necessariamente  nos limites da alma humana para só depois transbordar, regando toda as relações sociais. O “sistema” nada mais é que o somatório de indivíduos que seguem ou não a agenda do reino de Deus. A igreja que caminha de mãos dadas com o mundo deixa de ser Igreja.  Ela rejeita a missão de se tornar verdade  e  assume o papel de cliente  de um provedor abstrato—o estado. Ela deixa de tomar sua própria cruz abandonando  a rota sacrificial de Cristo e passa a exigir do estado a crucificação dos males externos que supostamente nos impedem de prosperar. A igreja cliente esquece que se há esperança para o mundo, ela só existe porque a luz que a igreja irradia remete a Cristo, farol que ilumina toda a existência.  É essa luz que evidencia o mundo como mundo. A igreja fiel, por ser igreja, apresenta o Cristo que condena o mundo mas que o ama a ponto de entregar a própria vida como um convite ao arrependimento e a conversão.
 Não argumento como alguém de fora. O texto é sobretudo a confissão de um pecado geracional do qual também faço parte. Deixo para que os especuladores deem a  resposta para a questão inicial. Mas humildemente afirmo que enquanto muitos cristãos, de mãos dadas com o mundo, saiam as ruas nos últimos dias para exigir justiça, Cristo continuou sendo a verdade que surpreende. Mais uma vez Ele nos ordena a servir ao invés de demandar favores a César.


[i]  Tradução livre de Hauerwas, Stanley, and William H. Willimon. Resident Aliens: A Provocative Christian Assessment of Culture and Ministry for People Who Know that Something is Wrong. 1 edition. Abingdon Press, 1989. Print. Pag. 38
[ii] Kierkegaard, Soren, and Charles E. Moore. Provocations: Spiritual Writings of Kierkegaard. Orbis Books, 2003. Print. Pag. 54
[iii]  Ver Hart, David Bentley. Atheist Delusions: The Christian Revolution and Its Fashionable Enemies. Yale University Press, 2010. Print. 




2 comentários:

  1. Um pensamento muito lúcido e raro por aqui, André. A verdade de Cristo, ou somente Cristo, a verdade, responde ao anseio de todos e, individualmente, ao vazio da nossa comunidade que se perde em nosso contexto de crise.

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    1. Obrigado pela atenção Wilde! Grande abraço... Também li seu texto sobre as manifestações! Achei bem interessante...

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