Enquanto as ruas das capitais
brasileiras se enchem de esperança, um vazio existencial se espalha pela igreja
cristã. A crise de identidade dessa igreja cresce a medida que se multiplica o
entusiasmo secular de construir um país melhor por vias sociais democratas. Nas discussões referentes as manifestações
“pacíficas” dos últimos dias, uma pergunta tem rondado a cabeça confusa da
igreja brasileira :Jesus iria ou não as
ruas para se manifestar contra o sistema? Variadas são as abordagens. Alguns defendem
que certamente Jesus sairia para
manifestar, que sempre lutou pelas causas dos oprimidos e que não seria agora
que se omitiria. Outros dizem que Jesus
jamais se misturaria com causas políticas. Há ainda aqueles que entendem que Jesus não iria, mas certamente apoiaria
os cristãos a fazer sua parte: ir as manifestações sem o uso da violência. Parece
me que todas essas alternativas compartilham de um problema hermenêutico fundamental
referente ao papel da Igreja no mundo.
Stanley Hauerwas é um teólogo
americano que apresenta uma voz singular no presente debate sobre a missão da
igreja de Cristo. Ele critica a fragmentação do evangelho que pode ser
observada através de duas formulações distintas no seio da igreja contemporânea.
De um lado, o evangelho espiritual diz respeito ao enfoque de uma mensagem de
salvação que opera apenas no âmbito micro-ético. De outro lado o evangelho
social diz respeito a uma abordagem sócio-política da vida humana. Hauerwas
afirma que ambas as posições se submetem a meta-narrativa da social democracia.
A abordagem do evangelho espiritual pressupõe que a igreja deve focar nas
mazelas da alma, sendo que os indivíduos devem cuidar da agenda social de forma
autônoma ao se engajar democraticamente no estado secular. A abordagem do
evangelho social, por sua vez, foca na transformação dos arranjos sociais e
políticos pressupondo que seja possível
hastear uma bandeira ecumênica de luta pela paz e justiça.
Longe de afirmar que o evangelho
espiritual não seja um problema, me atrevo a dizer que pelo menos no Brasil
essa é uma abordagem fora de moda e já bastante contestada. As grandes editoras
cristãs, os seminários teológicos e a eclesiologia brasileira têm flertado de
forma consistente com o evangelho social, na figura da teologia da Missão Integral.
Não quero pecar por simplismo. Sei que será difícil escutar de um defensor que a Missão Integral se resume estritamente ao
evangelho social. É preciso reconhecer que a Missão Integral se articula de
forma consideravelmente mais sofisticada. No entanto, para evitar entraves terminológicos, sublinho
apenas que o pensamento cristão brasileiro tem, de fato, se moldado em torno da
noção de que a igreja precisa tornar o evangelho relevante, atendendo as demandas sociais e políticas
contemporâneas.
Hauerwas critica a ingenuidade presente na ideia de
que igreja precisa tornar o evangelho relevante. Ele afirma que essa
perspectiva parte do pressuposto de que a missão da igreja seria a de simplesmente
transformar o mundo. Alertando sobre a incompletude desta abordagem ele lembra que a igreja só é capaz de compreender
a realidade através de Cristo. Nesse sentido, o próprio conceito de mundo depende do reconhecimento de que
Cristo é o Senhor. Esse é um ponto
fundamental que a igreja brasileira tem desconsiderado. Se é somente através da
vida, morte e ressurreição de Cristo que é possível compreender a realidade,
então a igreja, por definição, não luta pelas mesma coisas que o mundo luta.
Para explicar com Hauerwas, “a igreja não sabe o que [paz e justiça] significam
fora da vida e morte de Jesus de Nazaré”.[i] Ou seja, a igreja não consegue se
localizar politicamente fora do significado do evangelho e por isso mesmo há
uma diferença essencial entre ser Igreja e ser mundo. Daí concluímos que aquilo que Igreja chama de justiça e paz
passa a ter um significado diverso daquilo que o mundo chama de justiça e paz.
O erro
fundamental da Missão Integral é procurar traduzir o evangelho para uma linguagem acessível
a qualquer indivíduo, pressupondo que
valores sociais democratas sejam suficientes para construir uma ponte sólida de
diálogo. Uma espécie de ecumenismo centrado em palavras chaves como igualdade,
justiça e cidadania. Como Hauerwas
observa, quando um cristão se engaja politicamente
acreditando que é possível transformar o mundo através de uma debate que, por
natureza, exclui o fato de que Deus
governa o universo, ele já manifesta sua falta de fé. Hauerwas não defende uma
teocracia, mas nos alerta que se Jesus não submeteu a agenda de César, temos
motivos para suspeitar que, hoje, Ele também não se submeteria a agenda social democrática
defendida pela cidade dos homens. Cristo reconhece que César é sempre uma
possibilidade que apenas muda de nome e de endereço.
As palavras de Hauerwas podem soar cruéis e
exclusivistas, mas refletem um lado mais radical do evangelho. Um lado que tem
sido suprimido pelas correntes ideológicas de nosso tempo. De fato, é o próprio
Cristo que declara que Ele “trouxe a espada”. Sua palavra e vida criam necessariamente uma
divisão entre aqueles que o seguem e aqueles que o rejeitam. A crise de
identidade da igreja brasileira acompanha a agenda politicamente correta. Temos
nos submetido aos conceitos da moda política como forma de apresentar o
evangelho. Construímos um Jesus tolerante
e igualitário, pronto a afirmar qualquer comportamento dos chamados oprimidos.
Um Jesus que sai as ruas para
manifestar, ou um Jesus que fica em casa
ou , ainda, um Jesus que não vai mas envia manifestantes.
Em todos esses casos, um Jesus social
democrata, que se submete a crença de
que é possível construir um mundo melhor a partir de um projeto que rejeita
Cristo de início. É um Jesus que admite a lógica contemporânea
de que fé se refere ao âmbito privado e
que todos os indivíduos devem se engajar num debate político guiados pela neutralidade secular como único meio de alcaçar o bem comum da humanidade.
Longe de querer apresentar uma resposta definitiva para
a questão referente ao que Jesus faria frente as manifestações--isso pode
certamente terminar em uma idolatria que resume nosso Salvador a uma ideia—quero
apenas reforçar a noção de que Jesus sempre nos surpreende. Ele surpreende a própria lógica do debate
político de opiniões. Jesus não tinha opiniões. Ele é a verdade. Reduzir Jesus
a um mero posicionamento opinativo contraria a essência de nosso Salvador. Ele
é a verdade que ilumina toda a realidade. É o fundamento ultimo daquilo que
existe. Como observa Kierkegaard, simplesmente vivendo Jesus ensina mais que os
mais geniais dos mestres.[ii]
Ele nos surpreende porque sua vida é a verdade, enquanto nós carecemos de sua graça para que Ele nos transforme
em verdade. Não existe diferença
entre o que Cristo pensa e o que ele faz. Ele é. Sem entender essa realidade o mundo perambula em vão, insistindo
no projeto de construir Babel. Perplexos diante desse mistério, a humanidade
imita Pilatos e escolhe crucificar Deus em nome de um bem maior. Foi Justamente
por não entender que Jesus é a verdade que Pilatos preferiu crucifica-lo em
nome da pax Romana—a opinião de Roma
sobre o que promoveria paz e justiça.
Cristo também
nos surpreende por sua submissão e serviço. Quando o povo clamava por uma revolta
contra Roma em nome dos oprimidos de
Israel, Ele optou por servir, cumprindo a vontade de Deus por uma vida
sacrificial. Perceba que a vida de Cristo
contraria a retórica da exigência de direitos. Ele é a prestação necessária
para a própria vida. Cristo surpreende
Israel porque Ele leva até as ultimas consequências a realidade de que Deus
governa a história e o universo. Muitos cristãos que saem as ruas para protestar atendem um clamor geral,
demonstrando um certo receio de não se juntar ao coro e ser lembrado como quem ficou do lado errado da história. Afinal de contas, quem poderia contrariar a democracia? Cristo nos
surpreende porque, contrariando o clamor geral por aquilo que seu tempo entendia como
justiça, Ele insiste em se submeter ao Deus pai; O Deus que é soberano para usar
inclusive a corrupção dos poderosos para fazer prevalecer Sua vontade. Enquanto
o país precisa de educação, saúde e infraestrutura, a igreja sai as ruas para
manifestar e exigir, concordando que, de
fato, é o estado social democrático o grande responsável por nos prover os bens
necessários para a dignidade humana. Cristo nos surpreende ao
exemplificar que o Reino de Deus não nos impulsiona a exigir, mas nos
constrange a ser o que Deus exige de
nós.
Houve um tempo em que o que hoje chamamos de direitos era visto como a
materialização da graça e do amor de Deus por meio da igreja. De fato, a igreja, apesar de todos os seus defeitos e
limitações intrínsecas a própria condição humana, cuidou de agenciar o
amor de Deus ao seguir os passos de Cristo através dos séculos. Quando a igreja
passa a acreditar que o estado é que deve prover as prestações essências a vida,
ela começa a excluir Aquele que torna a própria vida possível. Ela transfere para o estado o dever que Deus
delegou para si. Vejamos então o contraste entre o que podemos chamar de igreja
cliente e a igreja agente. A igreja de hoje exige creches e
o fim do aborto, a igreja pré-moderna começou os orfanatos como alternativa
para aqueles que queriam abandonar ou
abortar bebês. A igreja de hoje exige
educação; a igreja medieval cuidou de guardar os livros e o conhecimento
ocidental em meio a uma Europa desestabilizada e desinteressada no saber. A
igreja de hoje exige escolas, a igreja reformada entendeu a importância
de ler as leis de Deus e deixou como legado o zelo pela alfabetização. A igreja
de hoje exige saúde, a Igreja pré-moderna multiplicou os hospitais assim
como os cristão primitivos cuidavam dos romanos vítimas da peste.[iii]
A crise de identidade da igreja brasileira é resultado
da falta de fé na transformação que vem de Cristo. Transformação essa que acontece necessariamente nos limites da alma humana para só depois
transbordar, regando toda as relações sociais. O “sistema” nada mais é que o
somatório de indivíduos que seguem ou não a agenda do reino de Deus. A igreja
que caminha de mãos dadas com o mundo deixa de ser Igreja. Ela rejeita a missão
de se tornar verdade e assume o papel de cliente de um provedor abstrato—o estado. Ela deixa de
tomar sua própria cruz abandonando a rota
sacrificial de Cristo e passa a exigir do estado a crucificação dos males externos
que supostamente nos impedem de prosperar. A igreja cliente esquece que se há esperança para o mundo, ela só existe
porque a luz que a igreja irradia remete a Cristo, farol que ilumina toda a
existência. É essa luz que evidencia o
mundo como mundo. A igreja fiel, por ser igreja, apresenta o Cristo que condena
o mundo mas que o ama a ponto de entregar a própria vida como um convite ao
arrependimento e a conversão.
Não argumento
como alguém de fora. O texto é sobretudo a confissão de um pecado geracional do
qual também faço parte. Deixo para que os especuladores deem a resposta para a questão inicial. Mas
humildemente afirmo que enquanto muitos cristãos, de mãos dadas com o mundo,
saiam as ruas nos últimos dias para exigir justiça, Cristo continuou sendo a verdade que surpreende. Mais uma
vez Ele nos ordena a servir ao invés de demandar favores a César.
[i] Tradução livre de Hauerwas,
Stanley, and William H. Willimon. Resident Aliens: A Provocative Christian
Assessment of Culture and Ministry for People Who Know that Something is Wrong.
1 edition. Abingdon Press, 1989. Print. Pag. 38
[ii] Kierkegaard, Soren, and
Charles E. Moore. Provocations: Spiritual Writings of Kierkegaard. Orbis
Books, 2003. Print. Pag. 54
[iii] Ver Hart,
David Bentley. Atheist Delusions: The Christian Revolution and Its
Fashionable Enemies. Yale University Press, 2010. Print.
Um pensamento muito lúcido e raro por aqui, André. A verdade de Cristo, ou somente Cristo, a verdade, responde ao anseio de todos e, individualmente, ao vazio da nossa comunidade que se perde em nosso contexto de crise.
ResponderExcluirObrigado pela atenção Wilde! Grande abraço... Também li seu texto sobre as manifestações! Achei bem interessante...
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